Fotografia de Analua Zoé
Eu ainda não morri. Mas todos os dias da vida me dei à
morte. Peito às balas do que viesse. Incapaz de ser pouco. Excedendo os limites
do aceitável. Dona de mim. E amante da morte. Essa que eu não temo.
Se a morte me diz que espere, eu espero. E, enquanto espero,
eu tenho pouca paciência para estar quieta. Sossegada. Passiva. A olhar para
paredes ou para ecrãs onde alguém finge que vive a vida por mim.
Eu sou demasiado. Uma mão completamente cheia de coisas onde
cabem mais coisas. Tão excessiva que enjoo, como o açúcar no chocolate quente.
E costumo pensar que é justamente a minha paixão pela morte que me faz assim.
Excesso. Porque quando a morte vem, eu sinto que ela podia vir e ficar. Mas ela
está só de passagem. Passa para beber da minha euforia histérica e do meu
desalento penoso. E diz-me. Quase sempre. Vim só buscar a emoção que não tenho.
Ela não se importa muito que eu esteja a chorar. Ou que eu
esteja a rir. Ou que eu esteja a partilhar beijos intensos. Ou que eu esteja a
reclamar sobre como nunca mais vou amar. Ela quer passar pelo meu quarto para
me ver. Porque eu sinto e ela não consegue.
Às vezes peço-lhe que me leve com ela. Desesperadamente. Já
andei de joelhos no chão, agarrada ao manto negro que ela deixa ondear. Por
favor. Por favor. Leva-me contigo. Eu sou uma menina da morte.
Mas ela não acha que eu seja uma menina da morte, embora
sorria sempre (ou eu imagine que sim) sob o seu capuz. Ela diz o contrário. Diz
que eu sou uma menina da vida.
Eu ainda não morri. Do amor, quase caótico, que tenho pela
morte, eu retiro tantos sentimentos, sentidos e formas de estar viva que se
torna difícil gerir o bater cardíaco que me lança sangue nas veias, enchendo-o
e despindo-o de oxigénio na passagem. A morte diz que gosta de mim porque eu
sei sufocar exatamente na mesma medida que sei inalar o ar do topo das
montanhas. E, quantas vezes, no canto mais extremo dos extremos desses
penhascos onde respiro, eu me imaginei a libertar o último sopro, num salto
para os braços dela...
Mas ela diz: tu não és uma menina da morte. Tu és uma menina
da vida.
E eu detesto que a morte me veja assim, como se eu
pertencesse à irmã dela. E explico-lhe: da vida, eu só tenho a ironia. De ti,
tenho a honestidade.
Ela discorda. Diz que, da vida, eu tenho a intensidade. Diz
que todos os excessos que vê em mim são o acumular de sedimentos do pó das
sensações que faltam aos outros. E que eu sou o choro compulsivo e o riso
desnorteado e a capacidade de sentir o coração descompassado e quase a sair
pela garganta quando um dedo indicador se encosta a outro sobre a mesa de café.
Eu ainda não morri. Mas insisto com ela que não sou uma
menina da vida. Ela passa-me a mão ossuda no rosto que sente. E deixa a
promessa. Ainda não! Mas, um dia, quando fores uma menina da morte, eu vou apresentar-te assim: ela é uma menina da morte que, por ter sido menina da vida, amou de paixão e
morreu de amor em todos os dias nos quais esteve viva.
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