terça-feira, 15 de outubro de 2019

Menina da vida


Fotografia de Analua Zoé 


Eu ainda não morri. Mas todos os dias da vida me dei à morte. Peito às balas do que viesse. Incapaz de ser pouco. Excedendo os limites do aceitável. Dona de mim. E amante da morte. Essa que eu não temo.

Se a morte me diz que espere, eu espero. E, enquanto espero, eu tenho pouca paciência para estar quieta. Sossegada. Passiva. A olhar para paredes ou para ecrãs onde alguém finge que vive a vida por mim.

Eu sou demasiado. Uma mão completamente cheia de coisas onde cabem mais coisas. Tão excessiva que enjoo, como o açúcar no chocolate quente. E costumo pensar que é justamente a minha paixão pela morte que me faz assim. Excesso. Porque quando a morte vem, eu sinto que ela podia vir e ficar. Mas ela está só de passagem. Passa para beber da minha euforia histérica e do meu desalento penoso. E diz-me. Quase sempre. Vim só buscar a emoção que não tenho.

Ela não se importa muito que eu esteja a chorar. Ou que eu esteja a rir. Ou que eu esteja a partilhar beijos intensos. Ou que eu esteja a reclamar sobre como nunca mais vou amar. Ela quer passar pelo meu quarto para me ver. Porque eu sinto e ela não consegue.

Às vezes peço-lhe que me leve com ela. Desesperadamente. Já andei de joelhos no chão, agarrada ao manto negro que ela deixa ondear. Por favor. Por favor. Leva-me contigo. Eu sou uma menina da morte.

Mas ela não acha que eu seja uma menina da morte, embora sorria sempre (ou eu imagine que sim) sob o seu capuz. Ela diz o contrário. Diz que eu sou uma menina da vida.

Eu ainda não morri. Do amor, quase caótico, que tenho pela morte, eu retiro tantos sentimentos, sentidos e formas de estar viva que se torna difícil gerir o bater cardíaco que me lança sangue nas veias, enchendo-o e despindo-o de oxigénio na passagem. A morte diz que gosta de mim porque eu sei sufocar exatamente na mesma medida que sei inalar o ar do topo das montanhas. E, quantas vezes, no canto mais extremo dos extremos desses penhascos onde respiro, eu me imaginei a libertar o último sopro, num salto para os braços dela...

Mas ela diz: tu não és uma menina da morte. Tu és uma menina da vida.

E eu detesto que a morte me veja assim, como se eu pertencesse à irmã dela. E explico-lhe: da vida, eu só tenho a ironia. De ti, tenho a honestidade.

Ela discorda. Diz que, da vida, eu tenho a intensidade. Diz que todos os excessos que vê em mim são o acumular de sedimentos do pó das sensações que faltam aos outros. E que eu sou o choro compulsivo e o riso desnorteado e a capacidade de sentir o coração descompassado e quase a sair pela garganta quando um dedo indicador se encosta a outro sobre a mesa de café.

Eu ainda não morri. Mas insisto com ela que não sou uma menina da vida. Ela passa-me a mão ossuda no rosto que sente. E deixa a promessa. Ainda não! Mas, um dia, quando fores uma menina da morte, eu vou apresentar-te assim: ela é uma menina da morte que, por ter sido menina da vida, amou de paixão e morreu de amor em todos os dias nos quais esteve viva.






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