Havia um romance policial pousado ao lado do cinzeiro. E
cinza no cinzeiro. E uma mão que segurava um cigarro despreocupado, com os
mesmos dedos que virariam as páginas do romance, em busca da resolução de um
crime, depois de humedecidos na ponta da língua. E a vida era pacata. Fumo sem
fogo, poderia dizer-se.
Ele era um homem de postura firme e sorriso amável. Que
gostava de romances policiais. E de cigarros. E dos netos. Não na mesma medida.
Na ordem inversa. Mais dos netos. Depois dos cigarros. Depois dos romances
policiais. E apenas para quem sabe a forma como ele sorvia os cigarros, em
contínuo e sem ligar aos excessos, pode um dia compreender a totalidade louca
do amor que ele dava às criaturas que a filha tinha trazido ao mundo.
Não era um homem como os homens são. Era um avô. Como os
avôs devem ser. Daqueles que, passo a passo, nos ensinam a ser gente. Daqueles
que sabem sempre resolver os problemas. Mesmo quando os problemas são mundanos,
mecânicos ou de saúde…
Recordo. Todos os problemas, para ele, facilmente se
solucionavam. Ele acreditava nisso. Na solução que tomava forma em uma de duas maneiras:
ou com arames ou com álcool etílico.
O carro não funciona? Usa
arames!
A cadeira partiu? Enrola
arames!
A persiana não funciona? Tenta
arames!
A minha avó reclama?
Ir aos arames.
O mesmo se diria da saúde.
Uma ferida? Álcool etílico
em cima.
Dores de cabeça? Álcool
etílico nas têmporas.
Dores de garganta? Álcool
etílico na região externa ou, em casos extremos, diretamente nas amígdalas.
Não pode exatamente dizer-se, do homem que lia romances
policiais, que fosse mestre de mecânica ou profissional de saúde. Mas o facto é
que as pessoas se habituavam a não adoecer (ou a fingir que não adoeciam) e que
até os objetos tinham medo de avariar ao pé dele.
Então, no dia em que o cinzeiro ficou sem cinza e o livro
ficou pousado e triste, sem que ninguém o lesse, eu achei que a minha mágoa
talvez pudesse, aos poucos, resolver-se também com os ensinamentos desse homem
que me ensinara a ser gente.
Os anos passam. Com o cinzeiro sempre vazio. Com o romance
policial eternamente parado na mesma parte da história. Aquela em que a falta
de desfecho é, em si, a mais perpétua das conclusões.
Os anos passam. Não consigo remendar o coração com arames.
Nem sarar a alma com álcool etílico. Nem tão pouco prender as memórias com
arames. E matar a saudade com álcool etílico.
Consigo sentar-me em frente à mesa e pegar no livro.
Folheá-lo sem o ler. E ouvir a tua voz. Sentir o teu olhar. E o aroma do
cigarro. E ouvir a minha voz: “Eu quero ser escritora”. E a tua, outra vez. “Então, escreve.”
E o livro pousado sobre a mesa. E o cinzeiro com cinza. E
eu, criança novamente. Inconsciente do dia em que quereria as tuas soluções
milagrosas para as curas de todos os males.
Talvez a escrita seja o meu arame e o meu álcool etílico.
Então, escrevo.
Hoje escrevo para o homem que lia romances policiais. E que
acreditava que tudo tem solução. Tudo. Tudo tem solução. Se não for arame; é
álcool etílico.
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